8 de setembro de 2012

O Bairro das Minhocas ou da Bélgica

O Bairro das Minhocas ou Bélgica em 1938. Eduardo Portugal. 


Bairro das Minhocas ou do Bélgica (ou mesmo dois bairros), ficava junto à Estação do Rego. Pelos anos 30, segundo me contaram, foi destruído por um grande incêndio, talvez em 1936 ou 1937, o que "obrigou" as autoridades da altura a apressarem a construção do Bairro da Quinta da Calçada, do Bairro da Boavista, do Bairro das Furnas tudo no fim dos anos 30 e inicio dos anos 40 e mais tarde o Bairro Padre Cruz, tudo em lusalite. A maioria das pessoas que vieram habitar o Bairro da Quinta da Calçada, vieram deste bairro, não foi o caso dos meus pais, que vieram do Bairro da Feiteira ao Pote D'Água.


Relatório (excerto) do Presidente da CML, Eng. Eduardo Rodrigues de Carvalho, referente ao ano de 1938, com referências ao Bairro das Minhocas e ao Bairro da Quinta da Calçada. Copiado de uma revista da CML.

Relatório (excerto) de 1940, do Comandante da Policia Municipal, Major Brito Galhardo, com referências aos anos anteriores e aos Bairro das Minhocas ou da Bélgica e ao Bairro da Quinta da Calçada. Copiado de uma revista da CML.



Chegarão 100 anos para acabar com as barracas? 

por

Nuno Teotónio Pereira  



Pelos fins do século passado começaram a ouvir-se vozes contra as condições degradantes de habitação, principalmente nos grandes centros. Políticos como Augusto Fuschini e higienistas como Ricardo Jorge denunciavam no Parlamento e na Imprensa as miseráveis condições de habitação em Lisboa e no Porto. Com o processo de industrialização destas duas cidades ao longo da segunda metade do século, as vagas de imigrantes rurais tinham engrossado a população citadina e o mercado de arrendamento convencional não podia satisfazer essa procura. Os bairros populares, como Alfama e o Barredo, ficaram sobrepovoados e os novos habitantes encontraram alojamento em condições improvisadas, corno os pátios lisboetas, conventos desafetados e palácios arruinados. Em breve, mercê de construtores oportunistas, foi surgindo um novo mercado de arrendamento, constituído por módulos de habitação precários e de dimensões ínfimas, sem as mínimas condições de higiene, ocupando terrenos sobrantes no interior de quarteirões. Foram as ilhas do Porto e os pátios e depois as vilas em Lisboa. Era esta a situação denunciada, clamando-se pela intervenção dos poderes públicos, em nome da higiene e da moral.

"Aspecto do Bairro das Minhocas, que a Câmara Municipal de Lisboa vai demolir. 02-08-1938". 
Foto encontrada em digitarq.dgarq.gov.pt. 

Nessa época não haveria ainda barracas, senão talvez como construções esparsas, não constituindo aquilo a que veio chamar-se os bairros de lata. Estes terão começado a surgir nos primeiros anos do século atual, principalmente na periferia de Lisboa. Mas o Estado, às costas com défices crónicos do orçamento, demorava a intervir. Enquanto a situação se ia agravando, algumas iniciativas isoladas de caráter filantrópico eram lançadas nas duas cidades; Francisco Grandella e o banqueiro Cândido Sotto Mayor em Lisboa e o jornalista Bento Carqueja no Porto são alguns dos seus protagonistas. 
Foi preciso esperar até 1918, quando no consulado de Sidónio Pais surgiram as primeiras medidas de proteção estatal à construção de habitações económicas. E logo no ano seguinte são lançados os primeiros "Bairros Sociais", em Lisboa, no Arco do Cego e na Ajuda, que levaram no entanto mais de uma década a ficar concluídos.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Com o advento do Estado Novo estas preocupações conhecem um novo impulso: em 1933 é criado o regime das "Casas Económicas", de propriedade resolúvel, corporizando as ideias de Salazar quanto à família: casa própria, modesta e bem portuguesa — em conjuntos que pretendiam reproduzir a estrutura das aldeias, incrustados na cidade. 
Em 1938, pela mão de Duarte Pacheco, é assumido diretamente o combate aos bairros de lata na capital, através do regime das "Casas Desmontáveis", feitas de chapas de fibro-cimento e para durarem 10 anos como alojamento temporário. Embora muitas tenham sido já substituídas, alguns núcleos ainda persistem passado meio século, nos bairros da Boavista e da Quinta da Calçada. Foi dessa maneira que se fez desaparecer o célebre Bairro das Minhocas, localizado perto do Rego. Acreditou-se então que o fenómeno das barracas era controlável a prazo, quando na verdade estava para lavar e durar. 
Em 1945 são criadas as "Casas para Famílias Pobres", já que os habitantes das barracas não podiam aceder às "Casas Económicas". E outras iniciativas surgem na década de 40, não já com o objetivo de eliminar as barracas, mas de acudir a outros estratos sociais um pouco por todo o País, já que o problema da habitação se agravava: "Casas de Renda Económica", "Casas de Renda Limitada", "Casas para Pescadores". Tiveram especial importância neste período as Caixas de Previdência, no tempo em que as prestações pagas por trabalhadores e empresas ainda se capitalizavam e investiam a um juro de 7% ao ano.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Entretanto é preciso esperar por 1956 para ver surgir uma ação de combate às ilhas do Porto: um programa de construção de 6.000 habitações em 10 anos, destinado aos moradores dessas ilhas. Lá estão numerosos bairros municipais, mas as ilhas continuaram a existir na cidade. Entretanto, em Lisboa novos bairros de lata iam aparecendo, espalhando-se pelos concelhos limítrofes. 
É então (1959), por decreto do Ministério da Presidência, ocupado por Pedro Teotónio Pereira, que é criado um Gabinete Técnico de Habitação na CML e se lança um programa específico de habitação social em termos integrados, de que resultaram os bairros de Olivais Norte e Sul, e depois Cheias, este ainda em desenvolvimento. Os dois bairros dos Olivais ficam na história de Lisboa como realizações positivas em termos de planeamento urbano, de prazos de execução, de integração de diferentes classes sociais, de intervenção de diversas entidades promotoras, de construção de equipamentos e de arranjo dos espaços livres. É nestes bairros, e no do Viso, no Porto, que o regime se vê obrigado a abrir mão do ideal da casa unifamiliar para o regime de "Casas Económicas".

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Mas o fenómeno já era alarmante. Em 1963 o Diário Popular realizou um inquérito exaustivo ao problema da habitação, cujas conclusões foram organizadas em 19 artigos a publicar no jornal, e que foi realizado por uma equipa de reportagem composta por Urbano Carrasco, Mário Henriques, Corregedor da Fonseca e Nuno Rocha. O primeiro artigo ainda chegou a ser publicado. No respetivo título dizia-se que o número de barracas em todo o País passara de 10 mil em 1959 para 50 mil em 63. Os restantes dezoito artigos, foram todos cortados pela censura. Tenho na minha biblioteca um volume encadernado contendo as respetivas provas tipográficas que me foi oferecido por alguém de confiança no jornal. É um documento impressionante de como nesses tempos eram ocultadas aos portugueses as realidades do próprio país. 
E no entanto a década de 60 viu ocorrer dois importantes fenómenos que atuaram como válvulas de escape na multiplicação das barracas: uma emigração massiva para a Europa, que absorveu fluxos populacionais habitualmente dirigidos para as duas áreas metropolitanas e, sobretudo na região de Lisboa, a proliferação dos chamados bairros clandestinos, que fizeram desviar dos bairros de lata muitos dos que tinham alguma possibilidade de investimento. Em 1964 é pela primeira vez contemplada a habitação nos Planos de Fomento.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Durante o marcelismo, em que foram centralizadas todas as atividades do setor no Fundo de Fomento da Habitação, foram lançados os chamados "Planos Integrados" (Lisboa, Almada, Setúbal, Aveiro), com o objetivo de estender o exemplo dos Olivais, mas pouco se avançou. Um Colóquio sobre a Habitação e outro sobre o Urbanismo (1969) permitiram no entanto o arejamento dos diferentes problemas em aberto, até então demasiado circunscritos aos gabinetes ministeriais. Mas a Censura, agora denominada Exame Prévio, continuava a impedir que muito dos aspetos sociais desta questão pudessem ser discutidos publicamente. 
Veio o 25 de Abril e um processo que hoje podemos classificar de histórico veio ao cima, com um dinamismo tal que se tornou possível uma vez mais prever o desaparecimento das barracas e das ilhas: o SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado por Nuno Portas, Secretário do Estado da Habitação dos primeiros governos provisórios.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Organizados os habitantes dos bairros degradados em Comissões de Moradores, estas desencadearam um processo de reivindicação de Norte a Sul do País sob a égide da palavra de ordem "Casas Sim, Barracas Não". Com o apoio estatal organizaram-se muitas dezenas de equipas técnicas pluridisciplinares, englobando desde arquitetos e engenheiros a sociólogos, economistas, geógrafos e trabalhadores sociais, que se encarregaram dos projetos, entretanto discutidos em assembleias gerais de moradores. As Câmaras Municipais, através de processos expeditos, iam disponibilizando os terrenos necessários. Muitos destes projetos iniciaram a construção, embora a grande maioria não tivesse tido tempo de atingir essa fase. É que em 1976 o sistema foi repentinamente suspenso por decisão governamental, sendo ministro da Habitação Eduardo Pereira, no quadro da chamada normalização democrática: o SAAL foi considerado excessivamente revolucionário face ao sistema representativo, por se encontrarem no seu alicerce formas de democracia direta. 
Atribuídas as competências do SAAL às Câmaras, sem qualquer apoio da Administração Central, alguns bairros puderam ainda ser continuados e certos terrenos aproveitados, mas o sistema tinha sido destruído. Foi o fim de um sonho de poder acabar com as barracas e com as ilhas. Assinados muitos dos projetos por alguns dos mais conceituados arquitetos portugueses, ficaram certas realizações como testemunho do muito que se poderia ter feito e de uma forma política, social e tecnicamente inovadora para um problema que se arrastava há décadas.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Eram entretanto relançados os Planos Integra­dos, mas o Fundo de Fomento da Habitação, que os geria, acabou também por ser dissolvido, remetendo-se essencialmente para os mecanismos do mercado, com umas magras bonificações de juros, a resolução do problema habitacional. O Instituto Nacional de Habitação e o IGAPHE, entretanto criados, financiam algumas realizações municipais e cooperativas, mas o problema continua sem solução à vista. 
Passadas duas décadas, o nível de vida das populações subiu, o parque automóvel cresceu, mas nem por isso as barracas e as ilhas viram reduzido o seu número. As que são eliminadas no decurso de programas de habitação social são muitas vezes substituídas por outras. Essas formas infra-humanas de habitação mostram assim constituir um problema estrutural da sociedade portuguesa. Ao longo dos últimos anos, a capacidade de realização de alguns municípios tem desenvolvido programas de habitação com a finalidade de acabar com o flagelo, mas a situação não dá mostras de melhorar, agravado o fenómeno com a vaga de imigração oriunda dos PALOP. Permanece como questão de fundo a enorme distância entre os valores pedidos pelo mercado e as possibilidades económicas de um vasto setor da população.

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 

Como há 100 anos, torna-se evidente que só com uma forte intervenção da Administração Central será possível proporcionar habitações decentes às populações que delas necessitam. Foi isso que o Governo finalmente reconheceu ao lançar as medidas que vieram recentemente a público. Resta saber se será desta vez que as barracas vão acabar. E isto sem esquecer que o problema da habitação não se esgota nas barracas. Longe disso. 

Texto de Nuno Teotónio Pereira
In Público, 23.9.93
encontrado em www.snpcultura.org

Bairro das Minhocas ao Rego. 1938/39. Eduardo Portugal. 



(Fotos Eduardo Portugal e Arquivo Fotográfico da CML)


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