20 de janeiro de 2013

O Bélgica na Rua da Beneficência

Cine-Bélgica em 1961.

Cinema Bélgica ou Cine-Bélgica ficava na rua da Beneficência, era o mais perto da minha casa e o mais barato, onde eu vi dezenas e dezenas de filmes. Íamos em bando, de três a seis miúdos e às vezes muitos mais, primeiro às sessões das tardes de fim de semana e conforme íamos crescendo, às sessões da noite; não tenho a certeza, mas creio  que o cinema só funcionava às sextas, sábados e domingos e também feriados; pelo que recordo, íamos mais vezes para o balcão porque era mais barato, mas também, íamos para a plateia às vezes, mas poucas. Tinha logo depois do porteiro, um hall com bar e arrumadores na plateia. Saiamos da Quinta da Calçada aos magotes e atravessávamos as traseiras do Hospital de Santa Maria que eram uns montes na altura (ainda não havia nem Hotel Penta, nem estrada) e íamos dar a um bairro chamado de ciganos, onde hoje está o edifício da banca, passávamos por esse bairro  e estávamos no cimo da rua da Beneficência  depois era só descer um pouco a rua e aproveitar para sacar alguma fruta das mercearias que havia no caminho. Já depois do 25 de Abril, voltei a frequentar muito este cinema quando se chamava Universal e só passava filmes de "qualidade", mas isso agora não interessa nada.

Um pouco da história do Cinema Cine-Bélgica e a planta do Cinema em; 
OS MAIS ANTIGOS CINEMAS DE LISBOA, edição da Cinemateca, 1978.


O Cine-Bélgica em 1968. Aqui tinha 40 anos.

«Cine-Bélgica abriu portas no início de 1928, tinha uma lotação estimada de 500 lugares e em 1933 foi lá colocada uma aparelhagem de som. Em 1968 a sala passou a chamar-se Cinema Universal, a partir de 1973, seria explorado pela firma Animatógrafo, sob a direcção do produtor e realizador António da Cunha Telles. Em 1980 a sala deu lugar a um espaço dedicado à música o Rock Rendez-Vous, por lá passaram algumas das melhores bandas de rock anglo-saxónicas dos anos 80. Encerrou as portas em 27 de Julho de 1990. Demolido, está hoje no seu lugar um café.» 
(In, Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa)

Cine-Bélgica, nesta altura Cinema Universal, 1977.

Anuncio de um filme no Cinema Universal em 1977.

(Fotos do Arquivo Fotográfico da CML)



5 de janeiro de 2013

Uma vaca na Quinta da Calçada - 1972


Tinha 18 anos quando isto aconteceu. Foi numa sexta-feira e creio que por volta das 23/24h, talvez, até mais tarde, porque o Juventude União Clube, já devia ter fechado. Muitas vezes no verão, costumávamos ficar à conversa no largo do Bairro da Quinta da Calçada, até às tantas, porque no outro dia não íamos trabalhar e uma vez, ouvimos um barulho, primeiro ao longe e depois aproximando-se. Ouvimos uns "cascos" como os dos cavalos e até pensamos que fosse um cavalo fugido do Hipódromo. Depois, foi tudo muito rápido, vindo da rua do campo da bola, por detrás da minha casa, aparece-nos uma vaca enorme a toda a velocidade. Parou uns segundos, olhou para o largo e creio que para nós e desatou a correr passando por trás da escola primária, e indo pela rua da árvores acima. 

Rua das árvores, por onde a vaca fugiu. A foto é de uns anos depois com o meu 
sobrinho Carlos, filho da minha irmã Helena à porta da casa da minha irmã Emília.

A memória que ficou, foi de uns olhos enormes de terror?, o tamanho enorme da vaca e uma cor esbranquiçada. Nós ficamos espantados (se calhar de boca aberta) até porque quando a vaca parou, estávamos a uns trinta metros dela, mas logo de seguida começamos a correr atrás da vaca, mas ela corria muito mais que nós. Quando chegamos ao Largo das Fonsecas, já não havia rasto da vaca. Continuamos a conversar por ali a ver se acontecia mais alguma coisa mas só no dia seguinte, soubemos da largada de touros e das "touradas" que houve. Falou-se na altura de muitas mortes, de assaltos, etc. Até que (40 anos depois) encontrei esta reportagem nas minhas buscas a jornais antigos. Leiam que tem graça.

É pena a foto ser péssima mas, à direita dá para ver o touro a investir contras as pessoas e o carro.
Copiado do jornal A Capital


LISBOETAS VIRAM BICHO NAS RUAS DA CIDADE - 1972
(excerto da reportagem do jornal A Capital)

«Andaram touros  à  solta pela  via  Pública. A excitação lia-se nos  rostos da pequena multidão que, a noite passada, fugia a sete pés o mais à frente possível dos doze gordos touros que corriam à desfilada pelo Campo Grande e Avenida  da República. As forças da ordem sorriam no centro do borborinho. A Câmara Municipal de Lisboa não só aprovou o acontecimento, como o  promoveu. Era tudo a brincar. É festa. Festas da Cidade. De Lisboa..

O homem parecia de gesso, tal a cor esbranquiçada, doentia;  respirava ainda a custo quando disse, sem conseguir acertar com a  chama do isqueiro na ponta do cigarro:     
— Um susto como este só me lembro de ter tido quando, há anos, me  caiu o candeeiro aos pés da cama... Mas adiante: ontem à noite, ia eu muito bem a tomar o fresco, na Rua de Entrecampos (eu moro no Bairro de S. Miguel), quando, chegado a uma esquina, oiço uma vozearia infernal e uma multidão a correr, vinda do Campo Grande. Naquele segundo pensei um milhão de coisas! Palavra! Eu comecei também a correr, mas pela Rua de Entrecampos, claro... Quando cheguei ao pé do novo Viaduto para  o caminho de ferro ouvi vozes vindas de cima. O que havia de me vir à cabeça? Só isto: que era o Apocalipse: Depois serenei, e reparei que eram pessoas como eu, que estavam encarrapitadas lá em cima. Continuei a serenar e verifiquei  que aquela gente estava ali para assistir a alguma coisa. Subitamente,  foi como se tivesse visto bicho. E vi! Vi um toiro a correr desenfreadamente pela Avenida da República! Estava eu muito bem a  vê-lo, quando vejo outro a correr mas em direcção a  mim!
Pausa para respirar
— Depois, não sei porquê, não me lembro de quase mais nada, até ao momento em que dei comigo já perto da praça ajardinada do Campo Pequeno. Não sei em quanto tempo percorri aquele quarteirão!... Mas notei que estava com a respiração ofegante. Devo, portanto, ter  corrido muito! Sempre acontece cada coisa a um homem! O meu nome não; não interessa o meu nome. Sou um lisboeta. Isso sou, olá  se sou.»

Sábado, 29 de Julho de 1972
Jornal A Capital